Das Pedras
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.
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Estas Mãos
Olha para estas mãos
de mulher roceira,
esforçadas mãos cavouqueiras.
Pesadas, de falanges curtas,
sem trato e sem carinho.
Ossudas e grosseiras.
Mãos que jamais calçaram luvas.
Nunca para elas o brilho dos anéis.
Minha pequenina aliança.
Um dia o chamado heróico emocionante:
- Dei Ouro para o Bem de São Paulo.
Mãos que varreram e cozinharam.
Lavaram e estenderam
roupas nos varais.
Pouparam e remendaram.
Mãos domésticas e remendonas.
Íntimas da economia,
do arroz e do feijão
da sua casa.
Do tacho de cobre.
Da panela de barro.
Da acha de lenha.
Da cinza da fornalha.
Que encestavam o velho barreleiro
e faziam sabão.
Minhas mãos doceiras...
Jamais ociosas.
Fecundas. Imensas e ocupadas.
Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar,
ajudar, unir e abençoar.
Mãos de semeador...
Afeitas à sementeira do trabalho.
Minhas mãos raízes
procurando a terra.
Semeando sempre.
Jamais para elas
os júbilos da colheita.
Mãos tenazes e obtusas,
feridas na remoção de pedras e tropeços,
quebrando as arestas da vida.
Mãos alavancas
na escava de construções inconclusas.
Mãos pequenas e curtas de mulher
que nunca encontrou nada na vida.
Caminheira de uma longa estrada.
Sempre a caminhar.
Sozinha a procurar
o ângulo prometido,
a pedra rejeitada.
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Pablo Neruda (III)
Poeta. Quando te foste para sempre
plangeram os sinos da
terra e silvaram todas as sirenas
dando aviso no universo.
Partiu-se o fio de ouro filigrana
da tua poesia universal.
Em que estrela remota
terá pousado tua cabeça
de poeta total?
Grande cantor das Américas,
domador insigne desse potro
bravio que descantas.
Indomado ao buçal e ao freio
com que tentam quebrar
tua rebeldia xucra.
Grande poeta.
Teu corpo gélido vai se desintegrando
molécula após molécula
na terra fria de Temuco,
e vai se integrando de novo
no grande todo universal.
E eu o vejo comandando
no etéreo todos os potros
indomados da Terra.
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Cora Coralina, Quem É Você?
Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.
Nasci numa rebaixa de serra
entre serras e morros.
"Longe de todos os lugares".
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.
Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.
Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentro
da imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.
Numa ânsia de vida eu abria
o vôo nas asas impossíveis
do sonho.
Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia
caída e a república
que se instalava.
Todo o ranço do passado era
presente.
A brutalidade, a incompreensão,
a ignorância, o carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes.
Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.
Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.
Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e raciocinada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a
consciência de ser autêntica.
Nasci para escrever, mas o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros contramarcaram minha vida.
Sou mais doceira e cozinheira
do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada à vida e
à saúde humana.
Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de
analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.
Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.
A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o Destino não me deu.
Foi assim que cheguei a este livro
sem referências a mencionar.
Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
Nem Menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.
Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.
Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.
Quem sentirá a Vida
destas páginas...
Gerações que hão de vir
de gerações que vão nascer.
Of Stones
I've put together all the stones
that have come down on me.
I've raised a staircase high
and climbed it to the heights.
I've woven a flowered tapestry
and lost myself in dream.
A road,
a bed,
a house,
a mate.
All of stone.
Between stones
my verses rose and grew.
My life…
Breaking stones
and planting flowers.
Among stones that were crushing me
I've lifted up the rough-hewn stone
of my own poetry.
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These Hands
Look at these hands
of a woman who works the earth,
rugged hands made to dig.
Heavy, short-fingered,
uncared for, unloved.
Bony and coarse.
Hands that have never worn gloves.
No gleaming rings for them.
My thin wedding band.
One day the stirring heroic call:
I gave my gold for Sao Paulo.
Hands that have swept and cooked.
Have washed and hung
wet clothing on the line.
Scrimped and patched.
Domestic heavy patchwork hands.
Intimate with getting by,
with the rice and beans
of their house.
With the big old copper kettle.
The earthenware pot.
Sticks of firewood.
Ashes from the woodstove.
Hands that filled with ash and lye the basket
for making soap.
My confectionary hands…
Never idle.
Fertile. Immense and always busy.
Hard working hands.
Open always to give,
to help, to join together and to bless.
Hands of a sower…
Accustomed to the seeding of hard work.
My hands, roots
seeking out the earth.
Always sowing.
Never for them the
joys of harvest.
Tenacious hands, obtuse,
battered from removing stones, from falling down,
from chiseling at life 's edges.
Hands like levers
excavating unfinished constructions.
The small short hands of a woman
who never found anything in life.
Wayfarer on a long road.
Always walking.
Solitary, searching for
the promised angle,
I, the rejected stone.
▲▲▲
Pablo Neruda (III)
Poet. When you went off forever
the bells of the earth tolled
and all the sirens screamed
to warn the universe.
It snapped, your golden thread
of universal poetry.
On what remote star
has that utter poet's head of yours
settled now to rest?
Great singer of the Americas,
renowned tamer of that wild
horse of whom you sing.
Unsubdued by halter or by reins
with which they try to curb
your primal disobedience.
Great poet.
Your freezing body molecule
by molecule disintegrates
in the cold earth of Temuco,
and gathers shape again
in the great and universal all.
And I can see you in the ether
ruling over all the wild
horses of the earth.
▲▲▲
Cora Coraline, Who Are You?
I am a woman like any other.
I come from the last century
and carry with me all the ages.
I was born in a hollow in the mountains
with hills and ridges all around.
"The middle of nowhere."
In a town from which they took
the gold and left the rocks.
Next to which my childhood
and adolescence ran their course.
The wild cliffs gave answer to
my yearnings.
And I, enclosed within those
endless mountain ranges
that turn to blue in far off
distances.
In my yearning for life I took flight
on the impossible wings
of dreams.
I come from the last century.
I belong to a generation
bridging the liberation
of the slaves and the freed laborer.
The fallen
monarchy and the republic
that rose up.
All the rancidness of the past was
present.
The brutality, lack of understanding,
ignorance, rigidity.
Corporal punishment.
At home. At school.
In the quarters and in the fields.
A child didn't have a chance,
adults were sadists
and imposed humiliating punishments.
There was an old school teacher who had
already taught the generation
before my own.
Teaching methods were
old-fashioned and I learned my letters
from outdated books which
no one even mentions any more.
Numbers never entered
my understanding.
Maybe due to the poverty that would mark
my life forever.
I needed little from numbers.
Being more a domestic than
an intellectual,
I never wrote in a conscious
and a reasoned manner, but rather
driven by an uncontrollable force.
Being like that gives me
a sense of authenticity.
I was born to write, but the environment,
the times, those around me and other factors
gave my life a counter brand.
I am more a pastry maker and a cook
than a writer, and cooking
is the noblest of the arts:
objective, concrete, never abstracted
from what is tied to life and
the health of human beings.
There was no literary stimulation from the family.
There was always, in the family, if not
hostility, at least a definite reserve
towards this innate tendency of mine.
Maybe, due to all this and more,
I feel within me, in the depths of my
secret reservoirs, a vague desire to be
illiterate.
I survived, reconstructing myself bit
by bit, from under the harsh views, the
rigid prejudices of the past.
Prejudices of class.
Prejudices of color and of family.
Economic prejudices.
Iron-bound social prejudices.
The school of life filled in
deficiencies of elementary school
for fate had given me no other.
That's how I made it to this book
with nothing special worth mentioning.
No first prize.
No second place.
No honorable mention.
No crown of laurels.
Just the authenticity of my
words torn bit by bit
from the depths of my sensibility,
and this yearning:
I try each day to get beyond
my own reconstructed
personality,
shattering within me
all that's old and dead.
Struggle, the vibrant word
that raises up the weak
and makes the strong determined.
Who will feel the life
within these pages…
Generations that will come from
generations not yet born.
(All translations into English by Alexis Levitin)